Crise

Crises são situações que costumam afastar turistas dos países onde ocorrem. No caso da Argentina, entretanto, foi exatamente o contrário. O país, antes relativamente pouco visitado, por ser um dos mais caros da América Latina, tornou-se uma das melhores opções para viajantes com baixo orçamento após o fim da paridade entre o Peso e do Dólar.

Durante aquele mochilão, ouvi muitas histórias de europeus que estavam fazendo um tour pelo continente contando que ficaram embasbacados com os preços ridiculamente baixos que pagaram enquanto estiveram na Argentina. Quem esteve em cidades maiores, viu bancos totalmente blindados contra as manifestações populares e centenas de apartamentos à venda.

Como eu já disse alguns posts atrás, nunca tinha entrado na Argentina até aquele janeiro de 2003, embora tivesse morado a 40km do país boa parte da minha vida. Talvez por isso, criei uma imagem na minha cabeça de como tudo seria por lá.

Aquele primeiro contato serviu para muito dessa imagem vir abaixo. O que vi foi um país inexplicavelmente decadente. Uma frota de carros composta na sua maior parte por Peugeots e Renaults do fim da década de 1970, prédios históricos em mau estado de conservação e muitos outros sinais de abandono e estagnação. O que mais me impressionou, contudo, foi ver pessoas que aparentavam ser de classe média fazendo serviços como colocar a bagagem no ônibus em troca de gorjeta. Lembro bem de uma senhora de mais de 60 anos de idade, toda pintada ao estilo das argentinas mais velhas, vendendo docinhos na rodoviária. Uma população sadia e educada vivendo numa situação precária.

Na mesma época, amigos meus que haviam estado em Buenos Aires contavam que viram famílias inteiras de classe média despejadas por falta de pagamento de aluguel, com toda a mobília na rua. A diferença disso tudo é que no Brasil já endurecemos com a pobreza. Aqui, o estereótipo da pobreza é o negro, o índio, o analfabeto, o favelado – pessoas que não tiveram oportunidades iguais aos demais. Lá, a crise jogou “gente como a gente” numa situação em que, aqui no Brasil, só “o outro” vive.

Foi um período curioso. Tínhamos que nos cuidar para não receber de troco nenhum patacón ou LeCop, uns tipos de bônus que as províncias começaram a emitir para pagar seus funcionários, por falta de dinheiro, e que eram a maior furada. A população estava tão traumatizada com o fim da paridade que praticamente não havia mais quem aceitasse dólar; tínhamos que procurar pelas poucas casas de câmbio que havia. O povo passou a odiar qualquer coisa que seja relacionada a políticos. Governo, juízes, polícia, empresários, ninguém presta.

Meses depois, quando conheci a Capital, foi minha vez de ver bancos blindados com marcas de panelaços nas proteções, monumentos pichados com frases de protesto e prédios públicos com cercas móveis que não deixavam chegar muito perto. Seqüelas do argentinazo.

Desde aquele janeiro, estive mais 6 vezes na Argentina (em nov/03, dez/05, fev/06, nov/06, abr/07 e jan/08), em Buenos Aires, Mar del Plata, nas províncias do Norte e do Nordeste, e felizmente vi as coisas melhorando aos poucos. Cada vez mais o país crescendo, só que não do mesmo jeito que era antes – dizem. A desigualdade aumentou e o país passou a ter problemas parecidos com os do Brasil (violência, evasão escolar, favelas). Catadores de papel e de latinhas, surdos que distribuem santinhos e flanelinhas (em alguns lugares) passaram a ser parte da paisagem. Apesar dos problemas, aprendi a gostar do país cada vez mais e certamente ainda vou fazer muita coisa por lá.

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