Puerto Quijarro e o Trem da Morte

Entrando na Bolívia, vindo de Corumbá (MS), você está oficialmente em Puerto Quijarro, cidadezinha com menos de 5mil habitantes. Como dito no post anterior, 3km separam a migração da estação de trem. No caminho, há hotéis que oferecem serviço de câmbio, uma boa oportunidade para conseguir alguns Bolivianos (moeda local), já que não há caixas automáticos à vista.

A pequena estação ferroviária não tem nada a não ser umas 3 bilheterias e os ramais de término dos trilhos. A confusão é grande quando as janelinhas se abrem, pois muita gente da região vive de comprar passagens antecipadas com desconto, algumas inclusive com preço de meia passagem para idosos, para depois revender com algum ágio.

Os preços, horários e categorias de trem estão disponíveis no site da concessionária, a Ferroviária Oriental S.A..

Quando chegou a nossa vez, já não havia mais passagens para o domingo, embora ainda faltassem umas 3hs para a partida e houvesse cerca de 10 vagões de passageiros. O jeito foi comprar de um cambista, um gurizinho de uns 12 anos de idade. O preço era ridículo: cerca de US$ 11 (já com o ágio do cambista) por cada passagem até Santa Cruz de la Sierra, em primeira classe (que não significa conforto). Lembre que quase pagamos 20 dólares àquele cambista em Corumbá!

O trem tinha 3 categorias: pullman (com bancos reclináveis tipo de ônibus de tursimo, em vagões nos quais não ficam entrando tantos vendedores a toda hora), primeira classe (bancos de madeira forrados com couro, quase nada de espuma por dentro, não reclináveis porque atrás de você outra pessoa senta "batendo cabeça" com você) e segunda classe (bancos de madeira pura, com grades nas janelas).

Como não há estradas asfaltadas ligando a fronteira BOL/BRA e o resto do país, é pelo trem que tudo é levado. Desde material de construção, até comida comprada em supermercados brasileiros, bebidas alcoólicas, alguma coisa de contrabando que não me arrisco a imaginar o que seria - tudo é carregado pelas pessoas dentro dos vagões, cujos compartimentos de bagagens acima das cabeças dos passageiros são tomados em questão de segundos por bolsas enormes carregadas com essa gama de produtos.

O trajeto tem 600km e dura cerca de 24hs. O trem pára a cada poste de luz que aparece no caminho. No início, em cidades como Puerto Suárez, onde a capacidade chega ao limite; depois, em pequenos povoados rurais e em algumas cidadezinhas um pouco maiores, como San José de Chiquitos. É um entra e sai a toda hora de gente, inclusive de madrugada.

De tanto em tanto, aparece um fiscal da Cia. Ferroviária para conferir a sua passagem, junto com um policial militar. Viajamos com passagens de pessoas idosas, carimbadas como "intransferíveis" e nominais (a minha estava em nome de Miguel Cuernavaca, maior de 60 anos), compradas do cambista, mas os fiscais nem dão importância a isso. Não importa se você conseguiu cochilar, eles te acordam e dão uma furadinha na passagem com um equipamentozinho de controle.

O banheiro fica sempre no final do vagão. É só um vaso com um buraco que dá para os trilhos. Prático e ecológico!

O trem balança muito, devido às más condições dos trilhos. Em alguns trechos até estão trocando os dormentes. Justamente em razão das condições dos trilhos, toda semana há descarrilamentos. Na nossa viagem não foi diferente. Às 5hs da manhã, tivemos um susto quando vimos 2 pessoas puxando um freio de emergência no nosso vagão. O vagão da frente havia saído dos trilhos e começou a ser arrastado pela terra. Imediatamente o trem todo parou, muita gente desceu e acompanhou a operação para recolocá-lo de volta nos trilhos. Basicamente, o que se fez foi desengatar o vagão descarrilado e ficar movimentando-o para frente e para trás, com o auxílio de uma forma que o conduziu de volta aos trilhos. Demorou cerca de 1 hora, num lugar no meio do nada.

Não consegui dormir das 18hs (quando saímos) até por volta do meio-dia do dia seguinte, quando comecei a dar umas cochiladas. O sacolejo é muito forte, os bancos muito retos e duros, o barulho irritante. Há vendedores de pastel, suco, café, limonada, barras de cereal, pratos feitos de comida, pipocas e outras coisas entrando e saindo o tempo todo dos vagões, gritando o que têm para oferecer. Lembro até hoje, no meio da madrugada, mulheres gritando "café, café, café, café, café..." num ritmo de trem correndo.

A venda de refrescos se faz como naqueles episódios antigos do Chaves: um balde de metal, com uma pedra de gelo boiando no suco, sendo remexido pela mão do vendedor de vez em quando, que serve o freguês com uma concha, utilizando um saquinho plástico como copo.

Para dormir, à noite, o pessoal começa a simplesmente deitar no meio do corredor. Os fiscais de passagens ficam na ponta dos pés desviando para poderem passar. Lembro que fiquei esperando para ir no banheiro por um bom tempo, para não ter que acordar uma pessoa que dormira bem na porta do banheiro.

Leve sua água (pelo menos 2 litros) e algo para comer, pois o trem não pára para lanches e, pelo menos nos vagões de primeira e segunda classe, não há nada que abra o apetite.

A paisagem também não empolga. É uma planície pantaneira sem fim a maior parte do caminho. Há um único ponto em que existe uma pequena serra, com umas formações rochosas que lembram de longe aquelas de Vila Velha (PR). Chegando mais perto de Santa Cruz, há grandes plantações de soja, com silos de marcas brasileiras, possivelmente de brasileiros que plantam por lá. Interessante observar que não há cercas dividindo nada. No subúrbio de Santa Cruz, alguns rios já da bacia amazônica são cruzados.

O que leva, então, a querer fazer essa viagem de trem?

Essa pergunta só pode ser respondida por quem viveu aquilo lá. É quase que uma provação espiritual ficar naquelas condições por um dia inteiro. Ali, você realmente vive e entende como vive aquela gente. Conversa com pessoas humildes, a maioria analfabetas, que não têm nem noção de como seja o Brasil. Não senti medo. Há muita pobreza, mas não tanta diferença social; logo, não há aparência de inveja pelas coisas que possamos estar carregando. A população é predominantemente mestiça, mais pendendo para o indígena do que para o espanhol. A viagem também te dá recordações que nenhuma outra vai dar, pela simplicidade de tudo ao redor. É tragicômico ver como as coisas funcionam. Passamos horas e horas sem ver qualquer traço de civilização ocidental ao redor, nem um anúncio de Coca-Cola ou de cerveja ao redor. Até hoje lamentamos não ter um gravador ou uma câmera para registrar pelo menos os sons de tudo aquilo.

O nível de civilidade parece que está algumas décadas atrás do que estamos acostumados a ver aqui no Brasil, e isso choca um pouco. Lixo era jogado pela janela como se não fosse nada. O que mais de vê são garrafas pet de 2 litros ao lado da ferrovia. Pessoas com papagaios de estimação no braço ou no ombro, com os bichos defecando nelas, não se importavam em continuar comendo o milho verde que tinham recém comprado. Crianças se mijam e nem por isso se trocam suas fraldas.

Sinceramente, acho que uma viagem dessas não seria completa sem a experiência do "Trem da Morte", que recebeu esse nome nas décadas de 70 e 80 por causa dos freqüentes acidentes com mortes e por causa da ação do tráfico de drogas. Hoje, ele continua pobre, desconfortável, mas único.

Comentários

Eu me fiz a mesma pergunta, André, "O que leva, então, a querer fazer essa viagem de trem?", hehehe...
Anônimo disse…
O que atrai? Marlon
Anônimo disse…
Estou planejando fazer esta viagem mês que vem... parece pelo o seu relato que é uma provação de paciência e humildade... porém o que disse sobre o lixo jogado pela janela isso é o mal das grandes empresas.... mais uma pergunta depois de santa cruz de lá sierra como chego a cusco?

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